D.
Maria Madalena, dera entrada no hospital público exatamente às 16h45min. Chegara
acompanhada pela filha que carregava um semblante triste e cansado, e talvez
por isso, transparecia sofrer de uma virtude anônima. As duas passaram pela
porta em lentos passos, e as mãos de D. Maria estavam tão pálidas e frágeis que
de longe podia vê-las destacadas sobre o peito. As mãos alvas e trêmulas da
velha se camuflavam entre a cor do vestido confundido minha visão. Havia entre
mãe filha uma débil energia, e isso, sem que eu soubesse por que, me envolveu. Olhei
ainda de fora, as duas caminhando em direção à recepção do hospital. Incrível,
mas a atenção da filha para com a mãe tinha um quê de conformidade, de
ineficácia, pois além de não encará-la, denotava certo vagar nos cuidados. Não,
não podia ser de uma expressão impiedosa aqueles gestos que vinham das mãos
enérgicas da filha.
Traguei com
furor o cigarro que eu trazia por entre os dedos, e prendendo a fumaça na boca,
fixei o olhar no queixo agudo da velha. Eu tinha uma visão privilegiada que me
permitia observar todo percurso sem me envolver diretamente. Lembro-me que
minha reação foi esboçar um gesto silencioso, escuro, mas que passou de
repente. Voltei-me para a filha - senti-a fria e transparente; o prudente naquela
situação era não dizer nada. Então, recostei-me na parede e levei mais uma vez o
cigarro a boca. O cheiro da nicotina me enjoou me causou um desconforto...
Senti-me como se eu tivesse com uma interrogação a minha direita e outra a
minha esquerda. Senti-me presa... E, qualquer que fosse a razão da prisão, eu sabia
que estava sob o efeito da inferioridade mental talhando feios desenhos sobre a
vida. Assim com raiva, confusa e estranha, olhei a velha ainda de pé ao lado da
filha. Que demora em atendê-la questionei-me interiormente. O cheiro do cigarro
ainda me embrulhava, pois ele queimava lentamente sobre a calçada, e a fumaça
me subia ao nariz. Não me lembro como ele se desprendera de meus dedos, mas o
fato, é que D. Maria me atraía sem fazer o mínimo esforço.
Ela me parecia
ser tão familiar! A pele flácida dos braços, as mãos inquietas e o olhar turvo
envolto de tristeza, poderosamente lançaram fora minhas interrogações, e
precipitadamente me envolveu em nevoentas aspas. Aproximei-me da velha, olhei o
rosto marcado por linhas cansadas e frouxas, e senti que ela ficou
constrangida. Olhou-me levemente contraindo os dedos fortemente, enquanto eu
desviei o olhar para a cerâmica gasta da recepção. Éramos estranhas uma para a outra;
o cenário, se me permitem dizer, era preciso arrancar as velhas pedras
silenciosas dos cômodos. Procurei um vínculo fora do clichê “somos todos irmãos”,
mas antes que eu encontrasse, de súbito, um homem apareceu no corredor
empurrando uma cadeira de rodas, e logo tratou de acomodá-la. Por um segundo,
tive a impressão de que ele a conhecia, mas depois de pô-la sentada na cadeira,
numa atitude quase mecânica, o homem simplesmente empurrou a porta que dava
para o corredor, e adentrou nela com um jeito apressado arrumando o jaleco
branco por sobre os ombros.
Afastei-me quase
sem esforço. Fiquei um tempo - que não sei precisar o quanto, observando D.
Maria fazendo gestos involuntários com o corpo. Ela tremia tanto, que era
impossível não ouvir o ranger dos ferros da velha cadeira de rodas. A velha
tinha um semblante aéreo e uma respiração de quem estava envergonhada. Contudo,
não demonstrava mágoa, e se sentia, disfarçava com maestria, apertando os
maxilares com uma força tenra - quase falha. Olhava sempre para baixo com um
olhar perceptível como quem procura um objeto indescritível, mas de muito
valor. Havia algo misterioso no olhar embaçado de D. Maria que não me deixava
descuidar dela. Levantei-me impaciente e pus-me a caminhar em direção a cadeira
mostrando interesse em encontrar o objeto valioso.
Meu Deus! É apenas
uma desconhecida! Por que estou fazendo isso? - Recuei um passo e senti minhas
pernas travarem, e inexplicavelmente meu olhar deu-se mais preocupado. Curvei-me
diante dela por um instante, e procurei junto ao chão uma explicação para tudo
aquilo. Não pude ver nada além dos pés pequeninos de D. Maria tremendo por
sobre as chinelas. Endireitei-me sob o efeito de uma angústia, e me propus a
sentar do lado dela. Toquei-a de leve, mas com receio. Senti um travo amargo ao
tocar suas mãos... Ela tinha uma pele tão sensível e ao mesmo tempo tão fria! D.
Maria estava gelada, e os espasmos do seu corpo multiplicado ao olhar de
reprovação da filha, não me permitiram ficar mais tempo segurando as mãos
cansadas da velha.
Afastei-me em
rebeldia. Desviei o olhar das mãos dela, mas uma força me segurava pela emoção.
Senti que ela buscou os meus olhos com precisão, mas eu estava tão atônita, que
não sabia se a olhava ou se tocava de leve as feridas cruas dos seus braços.
Optei por encará-la por alguns segundos, mas percebi que uma névoa separava meu
olhar do dela. Arrisquei ir mais fundo, mas olhar além da névoa daquele olhar
produziu em mim um efeito diabólico. Ficamos ali naquela agonia... Não queria
descuidar-me dela, pois seu olhar tinha uma cômoda ingenuidade que aclarava uma
insegurança. Fiquei olhando o tremor do corpo da velha que latejava sobre a
cadeira, ao mesmo tempo em que acompanhava o percurso do relógio que estava pendurado
por sobre a porta de entrada. De repente, um calor tomou conta de mim, e como
mágica senti-me esvaindo pouco-a-pouco. Tive a sensação que todo meu corpo
borbulhava, e sobre os meus dedos sujo de nicotina um fogo rebelde dilacerava o
tecido. Enquanto meu corpo ia diluindo-se em borbulhas e fogo, D. Maria se
mexia inquieta na velha cadeira sob os olhos fugidios da filha. Ah, fiz o que
não estava determinado a fazer; desviei minha atenção para uma borboleta
trágica e doce que adentrou na sala.
Estava eu dividida entre o fogo que tomava meu
corpo e as borbulhas que atiçavam as chamas? Estava o inseto fazendo um ritual
milagroso à esquerda e à direita de D. Maria? O que está acontecendo, pensei,
olhando o inseto circular com gentileza e condescendência. Quanta tranquilidade
transbordava aquela audaciosa borboleta! A cena era mesmo cotidiana; mas o que
era estranho era sentir de forma espontânea que o inseto, depois de ter sido
dividido por classes e reinos, estava unido a D. Maria como se fosse uma fusão
natural. Ponderei... O que estava
acontecendo?... Felicidade? Sonho? Paz? Harmonia? Alucinação... Não sei...
Talvez a alternância entre o que estava enclausurado e o que era celeste. A
filha olhou o corpo trêmulo da mãe, e num movimento inconsciente, deu-se de
ombros percorrendo os olhos pela sala do hospital. Tudo se fez cor e liberdade...
Não havia mais separação entre as asas do inseto e os pés cansados de D. Maria.
Então, uma vez mais olhei os olhos fugidios da filha, e juntos ficamos inertes observando
o distanciar do ranger da cadeira e a dança que ia misturando o colorido das
asas da borboleta ao vestido de D. Maria.
Nenhum comentário:
Postar um comentário