quinta-feira, 19 de fevereiro de 2015

A Máquina que Costurava


Sem dizer uma palavra, a mulher curvou-se sobre a máquina de costura, e mais uma vez ajeitou o tecido com cuidado. Estava exausta; ultimamente ela dera para se sentir assim. Respirou levemente, enquanto movimentava os pés num balanço contínuo de um vai-e-vem que magicamente fazia a agulha subir e descer diante dos olhos. Estava calma, mas pálida. Sentiu escorrer pela testa um suor tão amargo, que logo tratou de se misturar com uma lágrima que caiu. Involuntariamente, a agulha deixou de exercer sua dança, e entre ela e a máquina pairou um silêncio tão grande, que se podia ouvir o caminhar dos insetos por sobre a calçada. Olhou-os por alguns instantes pelo vão da porta e sentiu nojo e pena. Depois, pensou no árduo trabalho das formigas e levantou-se para vê-las mais de perto. Olhou-as com desdém, mas com coragem. Arriscou contá-las, mas estava tão cansada que decidiu voltar a sentar. Arrumou as pernas por entre o vão da caixa de costura, e pegou a tesoura afiada. Cortou a linha que prendia o vestido junto à máquina, e automaticamente pendurou-o junto dos outros tantos que confeccionara.

Voltou a pensar nas formigas que transitavam lá fora. Tencionou voltar a vê-las, mas sentia-se como se estivesse presa numa armadilha que os tenros fios de linhas coloridos lhe preparara. Procurou mover-se, e mais presa ainda ficou. Sentiu-se, como um inseto entrelaçado numa teia de aranha. Deixou que os braços caíssem por sobre as pernas, enquanto um vento forte e gelado envolvia as formigas numa cilada de morte. Ainda sentada, olhou de longe o desastre. “Meu Deus! Não sobrou nada.” A calçada ficou varrida; todas as formigas desapareceram e todo trabalho perdeu-se com o vento.

Um travo amargo lhe subiu a garganta, e algo ainda mais forte lhe veio à mente. Pensou nos longos dias em que não se permitira descansar, e quantas vezes, sem desprezar o orgulho que sentia do oficio, voltava a se ajeitar na máquina. Sentiu estremecer-se por dentro. Recostou-se na cadeira tremendo em deselegância. Não sabia dizer nada sobre as formigas, tampouco sobre si mesmo. Tudo era tão parecido, que às vezes se fundia em sua mente. Fechou os olhos na ânsia de recusar a realidade; queria esquecer, mas o movimento da máquina lembrava fortemente o caminhar das formigas por sobre a calçada. Tudo era tão semelhante, que a mulher começou a fazer similitudes. Virou-se rapidamente, e se permitiu fixar-se no espelho de moldura velha que estava pendurado na parede. Olhou-se reprovando. Não tinha o hábito de sorrir, e talvez por isso, mostrou-se desinteressada de tentar. Viu-a magra, cansada, pequena. Percebera alguns traços privilegiados e sutis, mas nada de elegante ou feliz.

Teve a sensação de estar sendo observada e sentiu medo. Virou-se como alguém que estava preparada para ver o inimigo oculto. Não tinha ninguém ali, além dos seus medos e dos seus fantasmas. Esbarrou sem querer numa pilha de tecido que estava por sobre a mesa. Que desastrada! Pensou ela, enquanto abaixava para pegar os tecidos caídos. Ainda tremia, quando sentiu tocar de leve um tecido caro. Tocou-o com as pontas dos dedos, e demonstrou-se espantada com a maciez dos fios. Nunca parara para tal ousadia, mas também nunca vira um tecido tão bonito e tão demasiadamente suave. Nunca se permitiu admirar, pois sua função era medir, cortar e juntar os pedaços. Tocou o pano um pouco mais forte e comprimiu-o contra o peito. Afagou-o ainda mais energicamente, e envolveu-o em seus braços, enquanto levantava-se com dificuldade. Trazia-o tão corajosamente junto ao corpo, que de súbito exigiu de si mesma um sorriso. Sorriu como há anos não sorria, e dançou feito uma bailarina sedenta que estivera presa a uma cadeira de rodas.

Movimentou-se, ainda que entre um passo e outro, ouvisse o barulho da agulha subindo e descendo sobre o tecido. Fechou os olhos suavemente, e como quem concede uma contradança, esticou o braço e girou pelo salão de costura. Soltou os cabelos em sinal de liberdade, e consequentemente, encarou-se a si mesma com lealdade. Dançou de olhos fechados por longos minutos, e o silêncio que nascia nela cobria-a de fogo e vento. E, quanto mais ela dançava, mais o vento a tomava, e tão mais voraz o fogo se nutria dela. Seus olhos, sua voz, seus ouvidos estavam singularmente sensíveis, mas bastante longínquos também. E, pela primeira vez, não pensou em reajustes nem se preocupou com o zig-zag da agulha sobre o pano; apenas, ajeitou as dobras do tecido e sob a emoção de vê-lo pronto, cortou a linha.

 

Lis Alencar.