Sem dizer uma palavra,
a mulher curvou-se sobre a máquina de costura, e mais uma vez ajeitou o tecido
com cuidado. Estava exausta; ultimamente ela dera para se sentir assim. Respirou
levemente, enquanto movimentava os pés num balanço contínuo de um vai-e-vem que
magicamente fazia a agulha subir e descer diante dos olhos. Estava calma, mas pálida.
Sentiu escorrer pela testa um suor tão amargo, que logo tratou de se misturar
com uma lágrima que caiu. Involuntariamente, a agulha deixou de exercer sua
dança, e entre ela e a máquina pairou um silêncio tão grande, que se podia
ouvir o caminhar dos insetos por sobre a calçada. Olhou-os por alguns instantes
pelo vão da porta e sentiu nojo e pena. Depois, pensou no árduo trabalho das
formigas e levantou-se para vê-las mais de perto. Olhou-as com desdém, mas com
coragem. Arriscou contá-las, mas estava tão cansada que decidiu voltar a
sentar. Arrumou as pernas por entre o vão da caixa de costura, e pegou a
tesoura afiada. Cortou a linha que prendia o vestido junto à máquina, e automaticamente
pendurou-o junto dos outros tantos que confeccionara.
Voltou a pensar nas
formigas que transitavam lá fora. Tencionou voltar a vê-las, mas sentia-se como
se estivesse presa numa armadilha que os tenros fios de linhas coloridos lhe
preparara. Procurou mover-se, e mais presa ainda ficou. Sentiu-se, como um
inseto entrelaçado numa teia de aranha. Deixou que os braços caíssem por sobre
as pernas, enquanto um vento forte e gelado envolvia as formigas numa cilada de
morte. Ainda sentada, olhou de longe o desastre. “Meu Deus! Não sobrou nada.” A
calçada ficou varrida; todas as formigas desapareceram e todo trabalho
perdeu-se com o vento.
Um travo amargo lhe subiu
a garganta, e algo ainda mais forte lhe veio à mente. Pensou nos longos dias em
que não se permitira descansar, e quantas vezes, sem desprezar o orgulho que
sentia do oficio, voltava a se ajeitar na máquina. Sentiu estremecer-se por
dentro. Recostou-se na cadeira tremendo em deselegância. Não sabia dizer nada
sobre as formigas, tampouco sobre si mesmo. Tudo era tão parecido, que às vezes
se fundia em sua mente. Fechou os olhos na ânsia de recusar a realidade; queria
esquecer, mas o movimento da máquina lembrava fortemente o caminhar das
formigas por sobre a calçada. Tudo era tão semelhante, que a mulher começou a
fazer similitudes. Virou-se rapidamente, e se permitiu fixar-se no espelho de
moldura velha que estava pendurado na parede. Olhou-se reprovando. Não tinha o
hábito de sorrir, e talvez por isso, mostrou-se desinteressada de tentar. Viu-a
magra, cansada, pequena. Percebera alguns traços privilegiados e sutis, mas
nada de elegante ou feliz.
Teve a sensação de
estar sendo observada e sentiu medo. Virou-se como alguém que estava preparada
para ver o inimigo oculto. Não tinha ninguém ali, além dos seus medos e dos
seus fantasmas. Esbarrou sem querer numa pilha de tecido que estava por sobre a
mesa. Que desastrada! Pensou ela, enquanto abaixava para pegar os tecidos
caídos. Ainda tremia, quando sentiu tocar de leve um tecido caro. Tocou-o com
as pontas dos dedos, e demonstrou-se espantada com a maciez dos fios. Nunca
parara para tal ousadia, mas também nunca vira um tecido tão bonito e tão demasiadamente
suave. Nunca se permitiu admirar, pois sua função era medir, cortar e juntar os
pedaços. Tocou o pano um pouco mais forte e comprimiu-o contra o peito. Afagou-o
ainda mais energicamente, e envolveu-o em seus braços, enquanto levantava-se
com dificuldade. Trazia-o tão corajosamente junto ao corpo, que de súbito
exigiu de si mesma um sorriso. Sorriu como há anos não sorria, e dançou feito
uma bailarina sedenta que estivera presa a uma cadeira de rodas.
Movimentou-se, ainda
que entre um passo e outro, ouvisse o barulho da agulha subindo e descendo
sobre o tecido. Fechou os olhos suavemente, e como quem concede uma contradança,
esticou o braço e girou pelo salão de costura. Soltou os cabelos em sinal de
liberdade, e consequentemente, encarou-se a si mesma com lealdade. Dançou de
olhos fechados por longos minutos, e o silêncio que nascia nela cobria-a de
fogo e vento. E, quanto mais ela dançava, mais o vento a tomava, e tão mais
voraz o fogo se nutria dela. Seus olhos, sua voz, seus ouvidos estavam
singularmente sensíveis, mas bastante longínquos também. E, pela primeira vez,
não pensou em reajustes nem se preocupou com o zig-zag da agulha sobre o pano;
apenas, ajeitou as dobras do tecido e sob a emoção de vê-lo pronto, cortou a
linha.
Lis Alencar.