quarta-feira, 22 de julho de 2015

O Trágico e Doce das Cores

D. Maria Madalena, dera entrada no hospital público exatamente às 16h45min. Chegara acompanhada pela filha que carregava um semblante triste e cansado, e talvez por isso, transparecia sofrer de uma virtude anônima. As duas passaram pela porta em lentos passos, e as mãos de D. Maria estavam tão pálidas e frágeis que de longe podia vê-las destacadas sobre o peito. As mãos alvas e trêmulas da velha se camuflavam entre a cor do vestido confundido minha visão. Havia entre mãe filha uma débil energia, e isso, sem que eu soubesse por que, me envolveu. Olhei ainda de fora, as duas caminhando em direção à recepção do hospital. Incrível, mas a atenção da filha para com a mãe tinha um quê de conformidade, de ineficácia, pois além de não encará-la, denotava certo vagar nos cuidados. Não, não podia ser de uma expressão impiedosa aqueles gestos que vinham das mãos enérgicas da filha.
Traguei com furor o cigarro que eu trazia por entre os dedos, e prendendo a fumaça na boca, fixei o olhar no queixo agudo da velha. Eu tinha uma visão privilegiada que me permitia observar todo percurso sem me envolver diretamente. Lembro-me que minha reação foi esboçar um gesto silencioso, escuro, mas que passou de repente. Voltei-me para a filha - senti-a fria e transparente; o prudente naquela situação era não dizer nada. Então, recostei-me na parede e levei mais uma vez o cigarro a boca. O cheiro da nicotina me enjoou me causou um desconforto... Senti-me como se eu tivesse com uma interrogação a minha direita e outra a minha esquerda. Senti-me presa... E, qualquer que fosse a razão da prisão, eu sabia que estava sob o efeito da inferioridade mental talhando feios desenhos sobre a vida. Assim com raiva, confusa e estranha, olhei a velha ainda de pé ao lado da filha. Que demora em atendê-la questionei-me interiormente. O cheiro do cigarro ainda me embrulhava, pois ele queimava lentamente sobre a calçada, e a fumaça me subia ao nariz. Não me lembro como ele se desprendera de meus dedos, mas o fato, é que D. Maria me atraía sem fazer o mínimo esforço.
Ela me parecia ser tão familiar! A pele flácida dos braços, as mãos inquietas e o olhar turvo envolto de tristeza, poderosamente lançaram fora minhas interrogações, e precipitadamente me envolveu em nevoentas aspas. Aproximei-me da velha, olhei o rosto marcado por linhas cansadas e frouxas, e senti que ela ficou constrangida. Olhou-me levemente contraindo os dedos fortemente, enquanto eu desviei o olhar para a cerâmica gasta da recepção. Éramos estranhas uma para a outra; o cenário, se me permitem dizer, era preciso arrancar as velhas pedras silenciosas dos cômodos. Procurei um vínculo fora do clichê “somos todos irmãos”, mas antes que eu encontrasse, de súbito, um homem apareceu no corredor empurrando uma cadeira de rodas, e logo tratou de acomodá-la. Por um segundo, tive a impressão de que ele a conhecia, mas depois de pô-la sentada na cadeira, numa atitude quase mecânica, o homem simplesmente empurrou a porta que dava para o corredor, e adentrou nela com um jeito apressado arrumando o jaleco branco por sobre os ombros.
Afastei-me quase sem esforço. Fiquei um tempo - que não sei precisar o quanto, observando D. Maria fazendo gestos involuntários com o corpo. Ela tremia tanto, que era impossível não ouvir o ranger dos ferros da velha cadeira de rodas. A velha tinha um semblante aéreo e uma respiração de quem estava envergonhada. Contudo, não demonstrava mágoa, e se sentia, disfarçava com maestria, apertando os maxilares com uma força tenra - quase falha. Olhava sempre para baixo com um olhar perceptível como quem procura um objeto indescritível, mas de muito valor. Havia algo misterioso no olhar embaçado de D. Maria que não me deixava descuidar dela. Levantei-me impaciente e pus-me a caminhar em direção a cadeira mostrando interesse em encontrar o objeto valioso.
Meu Deus! É apenas uma desconhecida! Por que estou fazendo isso? - Recuei um passo e senti minhas pernas travarem, e inexplicavelmente meu olhar deu-se mais preocupado. Curvei-me diante dela por um instante, e procurei junto ao chão uma explicação para tudo aquilo. Não pude ver nada além dos pés pequeninos de D. Maria tremendo por sobre as chinelas. Endireitei-me sob o efeito de uma angústia, e me propus a sentar do lado dela. Toquei-a de leve, mas com receio. Senti um travo amargo ao tocar suas mãos... Ela tinha uma pele tão sensível e ao mesmo tempo tão fria! D. Maria estava gelada, e os espasmos do seu corpo multiplicado ao olhar de reprovação da filha, não me permitiram ficar mais tempo segurando as mãos cansadas da velha.
Afastei-me em rebeldia. Desviei o olhar das mãos dela, mas uma força me segurava pela emoção. Senti que ela buscou os meus olhos com precisão, mas eu estava tão atônita, que não sabia se a olhava ou se tocava de leve as feridas cruas dos seus braços. Optei por encará-la por alguns segundos, mas percebi que uma névoa separava meu olhar do dela. Arrisquei ir mais fundo, mas olhar além da névoa daquele olhar produziu em mim um efeito diabólico. Ficamos ali naquela agonia... Não queria descuidar-me dela, pois seu olhar tinha uma cômoda ingenuidade que aclarava uma insegurança. Fiquei olhando o tremor do corpo da velha que latejava sobre a cadeira, ao mesmo tempo em que acompanhava o percurso do relógio que estava pendurado por sobre a porta de entrada. De repente, um calor tomou conta de mim, e como mágica senti-me esvaindo pouco-a-pouco. Tive a sensação que todo meu corpo borbulhava, e sobre os meus dedos sujo de nicotina um fogo rebelde dilacerava o tecido. Enquanto meu corpo ia diluindo-se em borbulhas e fogo, D. Maria se mexia inquieta na velha cadeira sob os olhos fugidios da filha. Ah, fiz o que não estava determinado a fazer; desviei minha atenção para uma borboleta trágica e doce que adentrou na sala.

 Estava eu dividida entre o fogo que tomava meu corpo e as borbulhas que atiçavam as chamas? Estava o inseto fazendo um ritual milagroso à esquerda e à direita de D. Maria? O que está acontecendo, pensei, olhando o inseto circular com gentileza e condescendência. Quanta tranquilidade transbordava aquela audaciosa borboleta! A cena era mesmo cotidiana; mas o que era estranho era sentir de forma espontânea que o inseto, depois de ter sido dividido por classes e reinos, estava unido a D. Maria como se fosse uma fusão natural.  Ponderei... O que estava acontecendo?... Felicidade? Sonho? Paz? Harmonia? Alucinação... Não sei... Talvez a alternância entre o que estava enclausurado e o que era celeste. A filha olhou o corpo trêmulo da mãe, e num movimento inconsciente, deu-se de ombros percorrendo os olhos pela sala do hospital. Tudo se fez cor e liberdade... Não havia mais separação entre as asas do inseto e os pés cansados de D. Maria. Então, uma vez mais olhei os olhos fugidios da filha, e juntos ficamos inertes observando o distanciar do ranger da cadeira e a dança que ia misturando o colorido das asas da borboleta ao vestido de D. Maria.