segunda-feira, 9 de março de 2015

A Menina Que Visitou o Rei


Vira-o numa tarde de outono. Entre a menina e ele havia uma distância tão grande, que o olhar dele, por mais que se esforçasse, jamais poderia vê-la, pois era ínfimo o valor das qualidades diante um olhar de julgo. Ela não merecia que ele a olhasse, mas mesmo assim arriscou. Virou-se encarando- a, enquanto ela timidamente segurava a emoção de vê-lo. O olhar durou o tempo de uma certeza, e a tarde, o tempo de uma lembrança. A menina passou a olhar as tardes envoltas de certezas e lembranças, e foi assim que acabou por descobrir o palácio do rei. Sabia onde encontrá-lo, sabia que precisava olhar nos olhos dele mais uma vez. Almejou visitá-lo. Pensou dias e dias como entrar no palácio; e, conforme os dias passavam a lembrança brotava e a certeza sorria. Escolheu um dia no calendário. Um dia que fosse especial, tanto para os reis quanto para os serviçais. Escolheu de ímpeto o dia Mundial da Paz, mas sentiu que o olhar do rei havia lhe tirado a paz, contudo queria viver a completude que vem do desassossego e das certezas ingênuas.
Estávamos em Maio, e demoraria tanto para chegar esse dia, que talvez a morte roubasse a certeza. Dormiu, espreitando a chegada de um novo dia. Sonhou com ele sentado num banco de pedra por entre um jardim. Ele tinha nas mãos um livro e uma flor, e diante dos olhos flores murchando. E, enquanto esmagava por entre os dedos as pétalas da flor que outrora colhera, sentiu um vento abalançar-lhes os cabelos que a coroa já não ornamentava. Subtraiu do livro um fragmento. Leu-o como se soubesse que a frase fora feito sob encomenda. “Eu venho de uma longa saudade. Eu, a quem elogiam e adoram. Mas ninguém quer nada comigo.” Os ecos batiam nos cantos do mundo e resplandeciam no seio agitado da menina. Um desespero tomou conta da noite, e ela acordou chorando. Voltara a cogitar a ideia de visitar o palácio. Recorreu mais uma vez ao calendário. Pensou no sonho, no olhar primeiro do rei... Tudo parecia mais fácil agora, pois conseguira escolher a data em que iria visitá-lo. Antes, pensou na saudade que sentia dele, e sentiu ciúmes do livro que vira em sonhos segurar a noite passada.
Que poder exercia sobre o rei aquela frase! O que falaria quando a porta se abrisse? ...? Tantos dilemas para uma menina. Pronto! Dia dos namorados e lá estava ela. Chamou com insistência o nome dele, e sem muito tardar ouviu uns passos que se aproximavam do portão. Era ele! Olhou-o como quem recebera um presente desembrulhado, mas misterioso. E, pela primeira vez, sentiu medo... Quis sugerir um engano, mas o rei convidou-a entrar. Sentou-se com cuidado sobre a poltrona e ajeitou-se incomodada. Desejou merecer dele um comentário feliz que instigasse nela uma lembrança e uma certeza. Mas, ele tão fraco e pouco alegre, recostou-se no trono, e esmagando a flor envolta de sonho que a menina trazia, nem sequer olhou para ela.

Que loucura! A menina descobrira que não era preciso sentir. Bastava apenas saber que sentia. Sentiu-se como se estivesse com fome, mas também saciada do que descobriu. Descobrira que não existe vazio ao sentirmos fome, porque a fome nasce de um sentir, e nós não precisamos sentir para saber se a fome existe ou preexiste em nós. Tudo se fez silêncio. Um silêncio desprovido de calma, de consistência. Ela sentiu como se o sangue congelasse nas veias depois que ele decidira encará-la. Sentiu saudades de si mesma, não porque ela tinha mudado, mas porque algo havia mudado nela. Olhou-se sem conseguir se reconhecer ou aprovar-se. Procurou dizer qualquer coisa que os fizessem sorrir, mas o riso dera lugar ao sofrimento. Tentou falar, mas a voz não saiu. Tencionou não chorar, mas os olhos lhe traíram. Ficou duplamente imóvel diante dele enquanto a pulsação da desilusão se movia nela.  E, sentindo que violara a paz noturna do rei, levantou-se sob críticas e reprovações, e antes que perdurasse a ideia de que tudo não passara de um sonho, ele mais tenro que as paredes do banco do jardim, fechou a porta do castelo e nem sequer olhou para trás.

Lis Alencar.

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