Vira-o numa tarde de
outono. Entre a menina e ele havia uma distância tão grande, que o olhar dele,
por mais que se esforçasse, jamais poderia vê-la, pois era ínfimo o valor das
qualidades diante um olhar de julgo. Ela não merecia que ele a olhasse, mas
mesmo assim arriscou. Virou-se encarando- a, enquanto ela timidamente segurava
a emoção de vê-lo. O olhar durou o tempo de uma certeza, e a tarde, o tempo de
uma lembrança. A menina passou a olhar as tardes envoltas de certezas e
lembranças, e foi assim que acabou por descobrir o palácio do rei. Sabia onde
encontrá-lo, sabia que precisava olhar nos olhos dele mais uma vez. Almejou
visitá-lo. Pensou dias e dias como entrar no palácio; e, conforme os dias
passavam a lembrança brotava e a certeza sorria. Escolheu um dia no calendário.
Um dia que fosse especial, tanto para os reis quanto para os serviçais. Escolheu
de ímpeto o dia Mundial da Paz, mas sentiu que o olhar do rei havia lhe tirado
a paz, contudo queria viver a completude que vem do desassossego e das certezas
ingênuas.
Estávamos em Maio, e
demoraria tanto para chegar esse dia, que talvez a morte roubasse a certeza.
Dormiu, espreitando a chegada de um novo dia. Sonhou com ele sentado num banco
de pedra por entre um jardim. Ele tinha nas mãos um livro e uma flor, e diante
dos olhos flores murchando. E, enquanto esmagava por entre os dedos as pétalas
da flor que outrora colhera, sentiu um vento abalançar-lhes os cabelos que a
coroa já não ornamentava. Subtraiu do livro um fragmento. Leu-o como se
soubesse que a frase fora feito sob encomenda. “Eu venho de uma longa saudade.
Eu, a quem elogiam e adoram. Mas ninguém quer nada comigo.” Os ecos batiam nos
cantos do mundo e resplandeciam no seio agitado da menina. Um desespero tomou
conta da noite, e ela acordou chorando. Voltara a cogitar a ideia de visitar o
palácio. Recorreu mais uma vez ao calendário. Pensou no sonho, no olhar
primeiro do rei... Tudo parecia mais fácil agora, pois conseguira escolher a
data em que iria visitá-lo. Antes, pensou na saudade que sentia dele, e sentiu
ciúmes do livro que vira em sonhos segurar a noite passada.
Que poder exercia sobre
o rei aquela frase! O que falaria quando a porta se abrisse? ...? Tantos
dilemas para uma menina. Pronto! Dia dos namorados e lá estava ela. Chamou com
insistência o nome dele, e sem muito tardar ouviu uns passos que se aproximavam
do portão. Era ele! Olhou-o como quem recebera um presente desembrulhado, mas
misterioso. E, pela primeira vez, sentiu medo... Quis sugerir um engano, mas o
rei convidou-a entrar. Sentou-se com cuidado sobre a poltrona e ajeitou-se
incomodada. Desejou merecer dele um comentário feliz que instigasse nela uma
lembrança e uma certeza. Mas, ele tão fraco e pouco alegre, recostou-se no
trono, e esmagando a flor envolta de sonho que a menina trazia, nem sequer
olhou para ela.
Que loucura! A menina
descobrira que não era preciso sentir. Bastava apenas saber que sentia.
Sentiu-se como se estivesse com fome, mas também saciada do que descobriu.
Descobrira que não existe vazio ao sentirmos fome, porque a fome nasce de um
sentir, e nós não precisamos sentir para saber se a fome existe ou preexiste em
nós. Tudo se fez silêncio. Um silêncio desprovido de calma, de consistência.
Ela sentiu como se o sangue congelasse nas veias depois que ele decidira
encará-la. Sentiu saudades de si mesma, não porque ela tinha mudado, mas porque
algo havia mudado nela. Olhou-se sem conseguir se reconhecer ou aprovar-se. Procurou
dizer qualquer coisa que os fizessem sorrir, mas o riso dera lugar ao
sofrimento. Tentou falar, mas a voz não saiu. Tencionou não chorar, mas os
olhos lhe traíram. Ficou duplamente imóvel diante dele enquanto a pulsação da
desilusão se movia nela. E, sentindo que
violara a paz noturna do rei, levantou-se sob críticas e reprovações, e antes que
perdurasse a ideia de que tudo não passara de um sonho, ele mais tenro que as
paredes do banco do jardim, fechou a porta do castelo e nem sequer olhou para
trás.
Lis Alencar.
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